#4 Mudanças climáticas: arte, museus e educação
Texto escrito para evento do coletivo "Amplia" da Universidade Federal de Uberlândia.
Se te dão uma caixa cheia de ar, qual é o presente? Fernanda Trías.
Agradeço o convite da professora Daniela Franco para estar novamente em Uberlândia. Uma alegria reencontrar amigas, amigos, colegas, depois destes anos pandêmicos intermináveis que nos adoeceram. Um tempo que ainda ressoa em nós, nos enluta coletivamente. Entendo este encontro no Museu Universitário de Arte (MUnA) da Universidade Federal de Uberlândia, em um sábado primaveril, como um refúgio florestal.
Uma floresta, nas palavras do pensador haitiano Dénètem Touam Bona (2020), compreende “o conjunto das linhas e elementos que recobrem [os seres humanos] com uma malha vegetal” (p. 17) lhes oferecendo um refúgio, um lugar de vida, um espaço-tempo camuflado para a reconstrução de si mesmos. A floresta é mais do que o meio ambiente, ela é um “impulso indócil do vivo” (p. 80). Na floresta podemos perceber e sentir densamente o ar que respiramos.
Desejo que estas linhas escritas para a abertura do evento Mudanças climáticas: arte, museus e educação possam, como diz um verso de Marília Garcia (2023), “fazer alguma coisa fora do papel” (p. 85), fora da tela em que as palavras foram desenhadas, para que elas ganhem textura, corpo, costurem outros textos. Minha vontade é fazer do ensaio uma brisa. Um sopro de ar respirável. Como se o texto nos lembrasse dos aromas inebriantes e ancestrais que viajam através dos rios voadores desde as florestas tropicais. Lamentavelmente, delas também tem soprado, a partir de uma secura impressionante, nuvens de poeira e fumaça.
Se tornou imperativo pensarmos no ar que respiramos, nós e toda uma multidão de espécies aeróbicas. Estamos conectados pelo ar. E juntos temos o desafio de criar refúgios para habitarmos e convivermos, ainda que os conflitos em nós e entre nós jamais cessem.
Aliás, um conflito quase sempre se impõe quando a arte e a ciência se encontram. Esta relação nunca é simples. Entre estes mundos criativos, tão importantes para o fortalecimento dos nossos refúgios, há perturbações e estranhamentos. Fricções. Desajustes. Uma oportuna intraduzibilidade. Entre eles existe o ar, ventoso ou calmo, seco ou úmido.
Os extremismos políticos, as narrativas de ódio, as guerras, as arrogâncias capitalísticas destruidoras das florestas, das suas umidades, das sabedorias ancestrais e das sensibilidades do mundo vivo; tudo isso deixa o clima na Terra irrespirável. Artistas, cientistas e educadores se sentem em uma interminável crise asmática. E também os museus universitários. Estes espaços múltiplos e variados de proliferação de sensibilidades. Muitos deles envolvidos na construção de encontros intranquilos, na promoção de interconexões, hibridações, entre os mundos da arte, da ciência e da educação.
Vivemos um profundo dilema. Ele nos assombra no tempo presente de um modo singular, embora não seja uma novidade. Ele se impôs de diferentes formas em momentos descontínuos da história da nossa espécie no planeta. E pode ser resumido em duas perguntas simples: como conviver? Como fortalecer a vida e a cooperação simbiótica, inibindo as infecções e combatendo as desigualdades?
Os efeitos das destruições de vidas, sensibilidades e memórias parecem inibir nossas ações. Como dar conta de tanto? Quando respiramos profundamente e olhamos para o quintal, para o nosso corpo, para a rua, para as pessoas, os seres e os objetos pouco visíveis e audíveis em nosso atribulado cotidiano, percebemos fenômenos sutis e coisas minúsculas, o infraordinário diria George Perec (2017 e 2016). Nos damos conta de muitos detalhes até então imperceptíveis preenchendo de vida nossas existências.
Emanuele Coccia (2020) diz que o “porvir está mais próximo da maneira como os vírus vivem do que os humanos e seus monumentos” (p. 208). O vírus é uma potência flutuante, uma força que se deixa levar pelo ar, livremente, até encontrar um espaço-corpo habitável e logo depois outro e outro e outro.
Quando olhamos para o alto não notamos o ar que permite a um vírus circular de corpo em corpo. Reparamos em sua existência quando os ventos derrubam os varais de roupa ou aterrorizam a solidez das nossas construções. Gostamos de mirar para além da atmosfera, para os corpos celestes, as estrelas, a lua, o sol. E quando olhamos para o alto não nos damos conta de que estamos em um corpo celeste. Nós estamos na Terra, no único lugar habitável para nós, os vivos deste planeta. O firmamento que vemos não é o nosso futuro, como nos faz sonhar filmes hollywoodianos como Perdido em Marte, entre tantos outros. O firmamento é um sítio arqueológico. Nas palavras de Coccia, ele é “um imenso museu a céu aberto, capaz de fazer reviver o passado do Universo” (p. 207). Se o passado é o que se desenha na imensidão acima de nós, o presente e o futuro exigem um olhar miúdo, tímido, para baixo, pois eles estão na Terra, neste corpo celeste envolto pelo ar que as plantas e as cianobactérias tornaram respirável. Elas criaram uma atmosfera. Ajardinaram o planeta e nos plantaram nele, nos permitindo respirar e, portanto, viver junto a elas.
A pandemia do SARS-CoV-2, provocada por nossa arrogância e por um ímpeto destrutivo da diversidade cultural e das florestas, precipitou em nós um movimento inescapável de criação de refúgios para podermos nos curar da asma, do sufocamento, da asfixia. A percepção da atmosfera se precipita como uma urgência, para além da imprescindível redução das partículas de carbono aquecedoras do planeta. Perceber a atmosfera para nos reconectarmos com o vivo que nos une, nos hibridiza, e para minimamente honrarmos a oceânica generosidade inclusiva das plantas e das cianobactérias.
Nos museus temos a oportunidade de pensar a respeito das criações do mundo vivo através das instalações que sonham e proliferam naturezas-culturas híbridas. A ficção criada através da arte é um refúgio florestal. Inclusive a que pode emergir dos nossos encontros corporais, em espaços expositivos, com obras articulatórias da ciência e da arte.
Bruno Latour (1994) nos alerta em Jamais fomos modernos de que a Modernidade se pauta em processos violentos de purificação e de separação. E ela segue forte nas performances políticas do presente. De um lado a natureza, de outro a cultura. De um lado a arte, de outro a ciência. Contudo, ao mesmo tempo e, paradoxalmente, em razão destes processos modernos de fabricação de estereotipias binárias, não param de se produzir no mundo os híbridos inclassificáveis de natureza-cultura, de arte-ciência.
Na literatura, terreno que tenho estado mais próximo como um artista em gestação, escritores como César Aira, Mario Bellatin, Marília Garcia, João Gilberto Noll, Wilson Bueno, entre outros, além de esculpirem minuciosamente a linguagem, “desenham experiências”, um termo de Reinaldo Laddaga apreendido em um ensaio de Ieda Magri (2020).
Desenhar experiências em um caderno de anotação foi a minha proposta aos estudantes de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Santa Catarina quando visitamos, em 2018, a exposição Intraduzível no Museu da Imagem e do Som (MIS) em Florianópolis. O ar estava gelado, era um fria quinta-feira de inverno. Para muitos, aquela foi a primeira ida a um museu. Foi uma surpresa para mim se defrontar com este fato. Publiquei um breve texto sobre esta visita e ao consultar aquele relato me deparei com um apontamento que me interessa reforçar. Naquela crônica escrevi[2]:
Alguns [estudantes] visitaram correndo a Mostra, literalmente, [como se seus corpos fossem uma ventania ou um ciclone], e em poucos minutos já estavam fora do espaço expositivo acionando seus celulares e conversando.
Ao final do percurso nosso bate-papo ficou circunscrito a duas questões. Primeiramente, trocamos ideias sobre como respirar pausada e profundamente para que um tempo se crie e um desenho da experiência se torne possível e se materialize em palavras e imagens em nosso caderno. Debatemos, também, o desconforto sentido com a dificuldade de traduzir de modo definitivo e certeiro aquilo que vemos, escutamos e tocamos em um museu, em uma exposição de arte-ciência. Como pergunta um verso de Marília Garcia (2023), “em que momento começou a rachadura?” A questão da poeta diz respeito às raízes das árvores habitantes dos espaços urbanos que explodem os concretos das calçadas nos permitindo testemunhar sua força, sua imensidão, um pouco do seu vasto mundo subterrâneo, já que seus troncos e folhas, tal como o corpo visível dos fungos, são apenas uma porção ínfima de suas existências. Como provocar uma rachadura nos conhecimentos acomodados, encaixotados, naturalizados, purificados em nós? Como fechar os olhos, respirar e notar um detalhe do vivo no espaço-tempo em que estamos? Como traçar linhas, desenhar, escrever, nossas experiências atmosféricas? Como perceber a dança dos troncos e folhas de uma árvore centenária provocada pelo vento?
A obra denominada Ar apresentada em 2018 na exposição Intraduzível no MIS em Florianópolis foi composta por três instalações interconectadas. A Mostra teve a curadoria de Juliana Crispe e reuniu obras criadas conjuntamente pelas artistas Silvana Macêdo, do Brasil, e Henna Asikainen, da Finlândia, com a colaboração de Frederico Macêdo e do astrofísico iraniano Reza Tavakol. As artistas se conheceram na Inglaterra durante seus percursos de formação acadêmica. O título da exposição, além de fazer referência aos movimentos intransponíveis da tradução entre a arte e a ciência, também reverbera as dificuldades de comunicação entre as artistas, uma brasileira e uma finlandesa que dialogam através de uma língua estrangeira para ambas: o inglês.
Em um primeiro gesto da obra Ar, nos encontramos com uma floresta boreal no Parque Nacional Koli na Finlândia através de uma videoinstalação produzida no ano de 2001. As copas das árvores estão cobertas por uma densa camada de neve e foram fotografadas e filmadas sob uma temperatura radicalmente baixa. Projetadas em uma parede branca do museu a neve gela nosso olhar. Os estudantes passaram diante da projeção produzindo vento com seus corpos velozes e quentes. Alguns imaginaram se tratar de fotografias. Não se deram conta de que era um vídeo e nele podiam testemunhar a presença viva do ar. Sutilmente os troncos das árvores se moviam. O ar, nas palavras de Silvana Macêdo (2022), é “um elemento que encapsula a realidade de interconexão, unidade e interdependência entre os viventes no planeta Terra” (p. 8). Para sentir o ar da floresta boreal projetada na parede do MIS era preciso silenciar, tornar o próprio corpo uma leve, fria e lenta brisa. Com diz os versos de Marília Garcia (2017):
se a gente prestar atenção e fizer silêncio
– Se a gente prestar atenção e fizer
silêncio –
pode ser que ouça
alguma mensagem
perdida no ar
Uma segunda instalação da obra Ar projetava imagens da floresta amazônica em uma espécie de estufa, disposta ao centro de uma das salas da exposição. Elas foram captadas na Estação de Pesquisa Aphonso Ducke do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) localizada a vinte e cinco quilômetros de Manaus. Silvana Macêdo (2022) comenta que na Estação as artistas se depararam com árvores dispostas, cada uma, em uma estufa de vidro. Seus crescimentos eram monitorados a partir de aumentos e diminuições artificiais da temperatura e pela medição da presença atmosférica do gás carbônico. A pesquisa em curso desejava vislumbrar o impacto das mudanças climáticas na vida das árvores a partir destas duas variáveis: a temperatura e a composição atmosférica.
As artistas trouxeram uma estufa para dentro do museu. Uma floresta em imagens foi projetada no seu chão. E a luz proveniente das imagens se refletia para fora da estufa atravessando seus vidros, criando outras paisagens. Com isso, a floresta ganhava espaço, perpassava os corpos dos espectadores. A instalação criava um ambiente imersivo, uma atmosfera. Ela nos florestava.
Por fim, a terceira instalação da série Ar diz respeito à exibição sobre uma mesa de um objeto envidraçado típico de um laboratório científico. Nenhuma substância dentro dele era visível a olho nu. Ele continha, podíamos ler na legenda da obra, ar extraído da floresta amazônica. Na visita à Estação do INPA, as artistas conheceram um cientista que tinha uma mala repleta de vidrarias com amostras do ar da floresta coletado em diferentes altitudes e períodos do ano. Na exposição, com diz Macêdo (2022), “o ar vira relíquia”.
Nestes trabalhos artísticos, a prática científica emerge como uma potência poética. Oferece ideias de suporte às projeções das imagens e dos objetos. Como lembra a bióloga e artista visual Franciele Favero (2023) em um parecer sobre um projeto de pesquisa, os modos como as imagens se apresentam em um espaço expositivo mudam drasticamente seus sentidos e as relações com o corpo de quem se encontra com elas. A videoinstalação da floresta boreal nos faz notar o ar através da sensação monocrômica, pouco variada, branca, da imagem. Na estufa, as fotografias da floresta amazônica se espraiam para outros espaços do museu, pelo chão, pela parede, pelo teto e tocam os corpos dos participantes. Sentimos a variação atmosférica e a biodiversidade da floresta.
Em alguns versos, Marília Garcia (2023) escreve:
a sensação tem mais relação com
o deslocamento pelo espaço do que com
a paisagem em si
Uma exposição sobre arte-ciência em um museu nos oferece uma passagem, um deslocamento. Provoca sensações. Um outro tempo respiratório. No nosso cotidiano nem paramos para pensar que estamos respirando. Inspirar e expirar parecem ser atos naturais. Contudo, respiramos em uma atmosfera fabricada, produzida lentamente pelos vegetais e pelas cianobactérias. Nós humanos somos, como diz Coccia (2020), um produto cultural e agrícola. Criar arquiteturas, espaços, jardins, urbanidades não é um gesto singular aos humanos. Esta é uma agência compartilhada com muitos outros seres, diz mais respeito a eles do que a nós, sobretudo, aos que nos convidaram a existir ao construírem uma atmosfera e muitos espaços em que o ar rarefeito é uma exceção. Mas somos nós, os humanos, alguns de nós, que nos empenhamos em rarear o ar atmosférico. Isto esteve por milênios e milênios restrito ao trabalho das altas montanhas ou das profundezas oceânicas. Mas é na superfície plana do planeta, em seus vales e bordas litorâneas, que o ar vem se tornando rarefeito para todos, com exceção, talvez, dos seres anaeróbicos. Esta é a novidade perturbadora que se apresenta diante de nós.
Ficções, encontros entre arte-ciência, se esforçam em criar refúgios para nos reconectar aos nossos ancestrais não humanos, aos nossos parentes de longa data. Isso só será possível com o reflorestamento das nossas sensibilidades. Algo que as cosmovisões dos povos indígenas nos alertam há centenas de anos. E é para honrar estes chamamentos ancestrais que estamos hoje aqui, juntos.
Muito obrigado.
Ilha de Santa Catarina, 18 de outubro de 2023.
Referências:
BELINASO, Leandro. Arte é só nas aulas de artes? Porto Alegre: ArteVersa, 2018. Acessar em: https://www.ufrgs.br/arteversa/arte-e-so-nas-aulas-de-arte/
BONA, Dénètem Touam. Cosmopoéticas do refúgio. Tradução: Milena Duchiade. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2020.
COCCIA, Emanuele. Metamorfoses. Tradução de Madeleine Deschamps e Victoria Zerbini. Rio de Janeiro: Dantes Editora, 2020.
FAVERO, Franciele. Parecer sobre o Projeto de TCC Um sítio em imagens: um convite à narrativa de Mariana Guimarães, estudante do Curso de Ciências Biológicas da UFSC orientada por Leandro Belinaso [texto digitado], 2023.
GARCIA, Marília. Expedição nebulosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2023.
GARCIA, Marília. Câmera Lenta. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos. Tradução de Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Editora 34, 1994.
MACÊDO, Silvana. O Sopro dos viventes: inspirações entre Arte e Ciência. DAPesquisa, Florianópolis, v. 17, p. 1–25, 2022.
MAGRI, Ieda. Da dificuldade de nomear a produção do presente: a literatura como arte contemporânea. Matraga: Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da UERJ, v. 27, n. 51, p. 529–541, 2020.
PEREC, Georges. Lo infraordinário. Traducción: Mercedes Cebrián. Titivillus, 2017.
PEREC, Georges. Tentativa de esgotamento de um local parisiense. Tradução de Ivo Barroso. São Paulo: Gustavo Gili, 2016.
TRÍAS, Fernanda. Gosma Rosa. Tradução: Ellen Maria Vasconcellos. Belo Horizonte: Moinhos, 2022.
[2] Ver em Belinaso (2018).
Texto incrível, fala maravilhosa... muito obrigada por tudo! Amamos! <3